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quinta-feira, 19 de maio de 2016

TSF Runners 3ª edição

No passado sábado, dia 14 Maio 2016, participei pela primeira vez na 3º edição da corrida TSF Runners.

Não era uma corrida que fizesse parte dos meus planos, muito por causa de ser em estrada e só 10kms, mas foi-me oferecido um dorsal e não resisti em ir lá e tentar um novo PBT.

[Ok, confesso. O maior motivo que me levou a aceitar foi o querer terminar uma prova depois do que se passou na Madeira. É, ainda, uma coisa que não esqueci, que me custa a aceitar e que pensei que atenuasse depois de correr uma prova do início ao fim. Ajudou um pouco, vá.]

Adiante... Apesar de ter um dorsal, estive quase para não ir. Depois ia de certeza. A seguir já não sabia se ia e acabei mesmo por ir. Não, não estou a ficar esquizofrénico, mas o dia de sábado foi um tanto ou quanto atribulado. Já o expliquei no facebook do blog, mas como nem todos lá vão, deixo aqui como foi em 15 pontos:

1- Acordar às 8h.
2- Ir tomar o pequeno almoço à Padaria Portuguesa.
3- Sair de Lisboa e ir adotar um cão à Lourinhã, através da Associação Projecto JAVA.
4- Ir com o pequeno cão ao veterinário e chamar-lhe Pistacho.
5- Chegar a casa às 15horas e almoçar uns noddles de frango instantâneos.
6- Ir ao Continente comprar comida, comedouro e brinquedos para o Pistacho.
7- Chegar a casa às 16h10 e equipar à pressa.
8- Sair de casa às 16:37.
9- Chegar à partida às 16:59.
10- Esquecer da fita para partir nos sub45 e partir no final de todos.
11- Correr que nem um louco até ao primeiro abastecimento porque não bebemos água em todo o dia.
12- Tentar apanhar o pacer dos sub40'.
13- Cruzar a meta e perceber que se fez um novo PBT.
14- Tirar foto à medalha, ao tempo no relógio e às sapatilhas Crivit (Lidl) e postar nas redes sociais.
15- Ir para casa e chegar lá 1h40 depois de ter saído.

Espetacular, não é?! E querem conhecer o Pistacho? Aqui está ele...

Pistacho. A ver se cresce e me acompanha nos treinos!

Sobre o meu desempenho. Era mesmo o que estava a precisar, acima de tudo, a nível anímico. Podia ter sido melhor se, de facto, não me tivesse esquecido da pulseira sub45'. Mesmo a chegar a 1 minuto do tiro da partida, entrava no meu bloco e evita ter de ir para o fim da pequena multidão que ali se reuniu numa tarde de sol para encher Belém de cor e boa disposição. A minha posição na geral podia ter sido melhor, mas o que conta é o tempo bruto, por isso...

Bem, tiro de partida e caminho devagar em direção ao pórtico de partida, sem forçar ultrapassagens ainda antes da contagem (para mim) começar a sério. Assim que ligo o relógio, ligo também o chip mental de competição e acelero a tentar ultrapassar tudo e todos. Aos fim de umas centenas de metros, encontro pessoal amigo e não resisti a meter um pouco de conversa. Este primeiro km foi o meu mais lento, feito em 4'22".
A partir daqui a estratégia foi tentar ultrapassar o pacer dos sub45' e, depois, fazer os possíveis para apanhar o dos sub40'. Com um 2º, 3º e 4º km a 4'06", 4'12", 4'21" respetivamente, o primeiro pacer foi rapidamente apanhado. Imprimi um ritmo mais vivaço, de acordo com o que o corpo me permitia tendo em conta que estava mal alimentado, arranjei uma lebre e os 5 kms seguintes foram feitos entre os 4'15" e os 4'16". Um autêntico relógio suiço. O último km, feito a 4'10", não foi o suficiente para conseguir um tempo abaixo dos 40', mas o suficiente para conseguir um novo recorde pessoal. Assim, terá de ser na corrida do Sporting que vou tentar chegar a este patamar.



Sobre a organização: Três abastecimentos numa prova de 10kms não se vê em todo o lado. Muitos voluntários a darem-nos água e a apoiar os atletas. Uma boa logística na divisão dos percursos das duas provas principais (5kms e 10kms), que evitou que andassem a correr lado a lado ou uns contra os outros. Uma meta com espaço suficiente para os atletas que chegam não terem de se sair dali à pressa. Uma medalha íman, um garrafa de água, uma maça e 2 pacotes de leite (que recusei) foram dados no final. Uma corrida para as crianças com vários insufláveis, fez-lhes as delicias e proporcionou-lhes momentos de grande diversão. Em resumo: tudo impecável e mais não se podia pedir. Não encontrei nenhuma falha e é uma prova que terei todo o gosto em voltar a repetir.

Por último, este recorde pessoal foi obtido com uns sapatos do Lidl, marca Crivit, e que me custaram 20€. Não, não têm a tecnologia de ponta das sapatilhas de 150€, mas, para mim, são impecáveis e mais que suficientes para estas corridas. Por isso, já sabem, às vezes o melhor não é o mais caro.


segunda-feira, 9 de maio de 2016

O (meu) MIUT - Madeira Island Ultra Trail 2016

Faz hoje 2 semanas que me sentei no topo do Pico do Areeiro e olhei para os picos que não percorri, para as escadas que não subi e para os trilhos que não me ficaram gravados na memória. No sábado anterior, pelas 16horas e alguns minutos, parava o relógio ainda antes de entrar no carro que me levaria a Curral de Freiras.



Duas semanas se passaram e muito ainda se fala, escreve e lê sobre esta prova que atrai milhares de atletas e outros tantos de acompanhantes. Um prova que cresce ano após ano e que é hoje uma das provas que integra o Ultra Trail World Tour. E é fácil perceber o porquê. Realizada numa ilha, que nos permite atravessá-la e conhecê-la em todo o seu esplendor e com uma organização que não deixa nenhum pormenor ao acaso. As marcações são quase de 5 em 5 metros, os voluntários são altamente prestáveis, os abastecimentos ricos e com condições para que os atletas não se sintam demasiado apertados (pelo menos foi o que senti), uma logística de entrega de dorsal rápida e eficaz e de transporte que deixa qualquer transportadora profissional a léguas. A receita perfeita para uma prova de sonho.



Falar do MIUT é falar de heroísmo. E antes de continuar, tenho de destacar os dois grandes heróis desta edição: Zach Miller, que fez o impensável e completou os 115kms em menos de 14horas, 13h52m para ser mais preciso; e Caroline Chaverot que pulverizou o anterior tempo feminino em mais de 3 horas, terminando em 15h e com um tremendo 8º lugar à geral.
E eu também quis ser um dos heróis que atravessa a ilha desde Porto Moniz até Machico, também eu quis ostentar orgulhosamente o colete finisher. E não havendo uma boa forma de o dizer, talvez a mais 'engraçada' é que trouxe de lá um colete tamanho DNF. Há, no entanto, quem diga que sou herói só pelo simples facto de ter participado na prova, que todos os que arrancam com a intenção de a terminar já são heróis, que os heróis do MIUT são todos aqueles que nele participam. Mas eu não concordo nem um pouco com isto. Herói é aquele que sai de Porto Moniz, que atravessa os picos e vales da ilha e que chega à meta, não necessariamente dentro do seu tempo previsto, mas sempre dentro do tempo limite da prova. Dito isto, eu não me posso considerar herói do MIUT. Eu apenas fiz aquilo que qualquer pessoa que já tenha corrido uma prova acima da distância da maratona pode fazer: inscrever-se e começar a prova.

E a minha prova começou em Outubro, quando me inscrevi nela e percebi que tinha de me preparar bem para o que me esperava. É certo que uma prova como esta não tem preparação possível. Dificilmente alguém que a tenha corrido pode afirmar que está completamente preparado para o que vai enfrentar. Correr em trilhos é sempre uma incógnita e isto aumenta exponencialmente em relação à distância da prova. O que podemos fazer é prepararmo-nos o máximo possível para que consigamos manter corpo e mente dentro do plano que levamos delineados. Ninguém no seu total discernimento mental se propõe a correr o MIUT sem ter um plano para a prova e sem treinar arduamente para minimizar a dor. Porque falar do MIUT é também falar de dor. Dor desde o momento em que sofremos ansiosamente pelo tiro da partida, dor nos primeiros kms em que sentimos as pernas 'perras' e descoordenadas, dor quando subimos os picos, dor quando descemos aos vales, dor quando os kms já se acumulam nas pernas, dor quando um lado da mente nos diz para parar e o outro diz que temos de continuar apesar das dores, e ainda dor nos dias que se seguem ao cruzar da meta. É certo que a alegria de terminar nos vai fazer esquecer todas as dores, mas ela vai sempre existir.

MIUT é dor, alegria e heroísmo.

Eu não fui exceção à regra. Também me preparei o melhor que consegui. Encontrei quem me pudesse dar orientação em todos os aspectos (treino, nutrição, equipamento, plano de ação in loco, etc), e dediquei-me afincadamente. Dedicar-me afincadamente quer dizer que foram muitas horas na serra, com muitos kms e muito desnível percorridos; que troquei manhãs no quente e conforto da cama por manhãs de chuva, frio e dor nos trilhos; que negligenciei quem comigo vive, família e amigos; que foram 6 meses onde tudo girou em volta da prova. E toda esta dedicação deu resultados. Quando no dia 23 de Abril de 2016 esperava ansiosamente pela partida, enquanto revia tudo mentalmente, enquanto me passavam mil coisas pela cabeça, sabia que tinha feito tudo para que conseguisse terminar a prova, tinha estudado todos os xs, ys e zs que iriam surgir, estava consciente de algumas variáveis que pudessem aparecer repentinamente e preparado para elas. Tinha na cabeça a fórmula resolvente para esta imensa equação. Não havia dúvidas, não havia medos, não havia mais nada a não ser o plano e o barulho dos atletas e dos espectadores.

Mas quando cruzei a linha de partida, fui invadido por um estranho silêncio. Via as pessoas a mexer as bocas e a aplaudirem, mas não as ouvia. Dentro da minha cabeça apenas ressoava o som da concentração. O plano traçado consistia em nunca me deixei levar pela tentação de correr demasiado rápido no início da prova, em nunca forçar demais um ritmo que pusesse em risco a continuação na mesma. Apesar do tempo limite no primeiro corte ter sido reduzido em 30', sabia que era exequível se fosse num ritmo calmo mas constante. A primeira subida, a ziguezaguear por Porto Moniz é feita quase toda a andar e a evitar as escadas para conseguir manter uma passada certa. Evitar escadas o máximo que pudesse fazia parte do plano para evitar desgaste das pernas. Ultrapassei e fui ultrapassado. Tivemos um estrangulamento ao km 2 quando o percurso passa por um lance de escadas onde não se consegue ir lado a lado. Andei até começarmos de novo a descer, onde soltei as pernas e pude finalmente apreciar os gritos do público que ali estava, debaixo de chuva, a aplaudir-nos. Ao km5 chegamos à base do primeiro km vertical. Quer dizer, à base do primeiro km e meio vertical. Um subida com cerca de 7kms, com 1487D+ e que nos levaria até ao Fanal. A progressão fazia-se lentamente, não tanto por cansaço, mas porque o terreno estava muito difícil. A chuva que caíra nos dias anteriores tinha deixado os trilhos completamente alagados e enlameados. A chuva miúda que agora teimava em cair só desapareceu quando ficámos acima das nuvens. Para mim foi um alivio, pois a combinação de chuva e do vapor de calor que libertava, eram sinónimos de óculos sempre embaciados. Cheguei ao Fanal (primeiro checkpoint) com 2h57'. Tinham sido quase 3h para percorrer 13kms. Por esta altura já tinha tomado 2 géis e 2 cápsulas de sódio. O plano era tomar uma cápsula e um gel de hora a hora. O abastecimento do Fanal parecia um campo de guerra. Atletas por todo o lado a rodearem as mesas repletas de tudo e mais alguma coisa (já vi casamentos com menos comida) e voluntários e assistentes pessoais a darem-lhes comida e bebida. Fiquei o tempo suficiente para encher os dois bidons de água. 7h30m pode parecer muito para fazer 28kms, mas estamos a falar da Madeira, por isso, o plano era fazer o mínimo de paragens, uma vez que levava nutrição comigo.

Arranquei do Fanal preparado para a primeira grande descida que me levaria a Chão da Ribeira. Uma descida com cerca de 4kms e com 823D-. Ia no meio de um grupo de atletas onde uma coisa era mútua: ninguém queria acelerar ali. A descida era muito técnica e estava muito perigosa devido à lama. Era possível sentir a concentração a flutuar no ar. Os frontais não iluminavam nada mais que o chão imediatamente à nossa frente. Ninguém ousava olhar noutra direção que não para a biqueira dos seus sapatos. De vez em quando ouvia-se um "You ok?", dirigido a alguém que tinha escorregado. Eu também o ouvi. Por duas vezes. Da primeira vez fiquei sentado nuns degraus de terra, da segunda vez quando me tentei equilibrar, sem sucesso, caí de forma esquisita no chão. Foi a partir daqui que o meu destino começou a ficar traçado. Levantei-me e tentei perceber até que ponto aquela dor no joelho iria ficar ou desaparecer. Decidi que tinha era de andar e logo se via. Alguns metros depois, uma atleta à minha frente escorrega e desliza uns dois ou três metros pela lama. Quando se levantou, olhou para o chão e ofendeu-o com todos os nomes feios estrangeiros que ela conhecia. Não percebi nenhum, mas a sua entoação não era simpática. Chego finalmente a Chão da Ribeira e percebo que tenho 3h15' para fazer os 10kms que me separam de Estanquinhos e do primeiro corte horário. Mais uma vez, estamos a falar do MIUT, e de mais um km vertical com 1100D+ em 4kms. Três horas pode parecer muito mas não é. Voltei a encher os bidons e arranquei.

Esta subida até Estanquinhos foi das coisas mais difíceis que já tive de fazer desde que ando nisto dos trilhos. É complicado explicá-la por palavras, mas quem já fez Piódão e subiu a Fórnea, esta é 10 vezes pior. A inclinação é brutal, o terreno massacrante (com a agravante da lama), ninguém consegue falar e só se consegue ver os sapatos de quem vai à nossa frente. Nos momentos em que paramos para respirar ou tirar um gel da mochila e olhamos para cima, vemos pequenas estrelas brancas e vermelhas até onde o pico termina, que mais não são que os frontais de outros atletas. Segui num comboio de 6 ou 7 pessoas a um ritmo lento. Tão lento que comecei a olhar para o relógio e a temer que não conseguisse passar antes do corte. Mas também não era capaz de ultrapassar. Íamos num single track e ultrapassar não só era perigoso como não conseguiria manter o ritmo durante muito tempo. Decidi manter-me com aquele grupo, que apesar de lento ia constante, e acelerar depois da subida. Este, apesar de tudo, era um ritmo confortável para o joelho, que começava a dar sinais quando tinha de dobrar mais a perna. Pelo caminho fomos passando por alguns atletas sentados em pedras e troncos, claramente conscientes que não iram passar do primeiro corte. Mais uma vez subimos até nos encontrarmos no meio das nuvens. Quando ficámos acima delas tive uma das visões mais espetaculares de sempre: um manto branco acinzentado, que lembrava uma cama infindável de algodão, iluminado por uma lua gigante e pela luz do meu frontal. Durante alguns segundos fiquei parado a observar aquela fotografia surreal. Quando a mente voltou para a corrida, corri. Corri em plano, corri a descer, trotei nas subidas, esqueci o desconforto no joelho. Só queria chegar a Estanquinhos antes do corte. Finalmente começo a ver as luzes do abastecimento e sorri ao ver que iria conseguir. Entrei nele com 7h04m. Tinha demorado 7h04m para fazer 27,7kms. Por esta altura já o Zach Miller tinha saído de Curral das Freiras e corria a segunda metade da prova.

Aqui fiz uma paragem maior. Era altura de comer algo mais que gel e beber um recovery. O plano nutricional estava a ser seguido e estava a funcionar bem. Nunca senti fome, nunca senti quebras, nunca senti que as pernas não tinham combustível, e isso deixou-me feliz. Se no Fanal parecia um campo de batalha, aqui já se viam as primeiras vitimas. Muitos eram os atletas que já estavam sentados e não iriam continuar. Era visível nas suas caras a tristeza e a desilusão. O dia estava a começar a nascer e pela primeira vez senti frio. Tinha arrancado só com uma camisola e a t-shit de alças dos Pernas de Gafanhoto, e senti necessidade de vestir o impermeável e as luvas. Quando saí do abastecimento 10-15' depois de ter entrado, sabia que aquele seria o fim para muita gente, mas não tinha sido para mim. Tinha ultrapassado um dos meus maiores receios. Porquê este receio? Façamos as contas: o MIUT tem 115kms e 7000D+; em 27,7kms (menos de 1/4 de prova) temos cerca de 3000D+ (quase metade). o que torna este segmento demolidor e um autêntico cemitério.

A descida de Estanquinhos até Rosário brinda-nos com um km vertical negativo e todo o tipo de trilho possível, desde o estradão, passando por levadas e acabando em escadarias.. No entanto, para quem a fez com o dia a nascer, é também brindado com novo espetáculo natural que envolve nuvens, picos montanhosos, sol e um céu de tons laranja avermelhado. Tirei a única foto durante toda a prova e é a que está a ser usava como header deste blogue.


Seguia confiante até que o joelho me começou a lembrar que existia e que estava ali para me dificultar a coisa. Sempre que tinha de descer uma zona mais técnica, sempre que tinha de dobrar um pouco mais a perna, a dor aparecia. E cada vez mais intensa. Comecei a ficar muito apreensivo. Quando cheguei às escadas percebi que iria ter problemas sérios. Comecei a pôr tudo em causa. Comecei a pensar em todos os esforços que tinha feito e que poderiam ser arruinados por causa de um joelho e de uma dor que nunca em 6 meses de treino tinha sentido. Evitei ao máximo ir pelas escadas, aproveitando, sempre que possível, o terreno inclinado. A chegada a Rosário foi conseguida à custa de muito sofrimento. Enchi os bidões, tomei um gel e segui. Sentia-me a perder muito tempo e ainda estava longe de Curral das Freiras. Pelo meio, ainda tinha de ultrapassar a subida à Encumeada e todos os degraus que lá me levariam.

Se o joelho tinha respondido mal à descida, respondeu ainda pior às escadas. Sempre que o levantava para subir um degrau, parecia que alguém me enfiava uma faca na parte interior e abaixo da rótula. A cada subir de degraus soltava um esgar de dor e um ou outro impropério. Estava numa zona lindíssima, o trilho que nos leva até lá acima tem tanto de infernal como de belo, e eu não estava a conseguir aproveitá-lo. Nem o trilho nem a prova. Foi aqui que pensei que a minha prova estava acabada. No entanto ainda faltavam uma meia dúzia de horas para o próximo corte. Tentei ao máximo abstrair-me da dor, baixei a cabeça e segui. Ao fim do que me pareceu 10000 degraus, cheguei ao topo e tinha agora umas centenas de metros de alcatrão a descer até ao Hotel da Encumeada. Tinha previsto chegar a este posto pelas 10horas da manhã, cheguei lá às 11h04m. Aqui aproveitei para comer umas bananas, umas fatias de bolo, uma sopa, beber um café e novo recovery. Aproveitei para me sentar e descansar um pouco e ir à casa de banho lavar a cara. Tomei também um comprimido para as dores. Afinal de contas estava prestes a entrar no segmento mais longo, cerca de 15kms, e, quando saí do abastecimento, tinha 3h30m para chegar antes das 15h.

A saída da Encumeada reservava-me a passagem por um dos sítios que mais curiosidade tinha em ver: o pipeline. Infelizmente para mim, foi também aqui que tive a certeza que não iria terminar a prova. A "escalada" que ladeava o enorme tubo metálico verde era feita através de degraus em cimento, de tamanho mais ou menos irregular, mas sempre mais altos que a canela, alguns a chegar ao joelho. Subir cada um deles era sentir uma dor enorme que me fazia cerrar os olhos e ranger os dentes. Naqueles 500m de escadas já tinha perdido cerca de 30'. Quando as terminei e entrei nos trilhos onde qualquer pessoa pode andar para conhecer a ilha, o estrago estava totalmente consumado. Qualquer movimento que me obrigasse a dobrar a perna causava-me dor. Decidi tomar um segundo comprimido, mas quando os procurei na mochila percebi que o saco com os comprimidos, o telemóvel e as pilhas de reserva tinham ficado no hotel. Estava demasiado longe para lá voltar e ainda tinha uma réstia de esperança em chegar a Curral de Freiras a tempo de poder continuar. Se o conseguisse, não diria nada sobre a minha lesão e continuava, com todas as consequências que isso poderia trazer. Seguia agora desanimado, dorido, completamente exposto a um sol abrasador que me fazia escorrer suor para os olhar e que foi a desculpa ideal para libertar algumas lágrimas. Não sendo um trilho muito técnico, era uma subida constante, onde eu tentava correr sempre que conseguia. Queria muito, muito chegar a horas, mas para onde quer que olhasse só via um trilho a ladear os picos e sem fim à vista. Quando finalmente terminei aquele troço, entrei na descida para Curral de Freiras. Eram 14h34m e ainda me faltavam 6kms, os primeiros 4 muito técnicos e os últimos 2 pelas ruas e escadas da vila. Ainda tentei esboçar uma corrida, mas não durou mais de 200m. Era o momento de enfrentar a triste verdade: o meu MIUT estava terminado. Durante a descida foi ultrapassado por outro atleta, que me perguntou se estava bem e a quem eu pedi que avisasse a minha família que estava lesionado mas a ir ao encontro deles (João Mata, dorsal 293, se estás a ler isto, obrigado por os teres avisado). Continuei o meu caminho, um passo de cada vez, sofrendo sempre que mexia a perna esquerda, até que fui apanhado pelo segurança/vassoura da prova. Vinha com um grupo de voluntários e que me acompanharam até ao ponto onde me iriam levar de carrinha até ao posto de vida em Curral de Freiras. Foi neste momento que ele me cortou o dorsal, tirando o pedaço do DNF, e oficializou o que eu já sabia. Fiz o resto do caminho sem dizer uma palavra. Quando cheguei, fui recebido pela minha família, que me abraçou, beijou e felicitou com o mesmo entusiasmo que fariam caso tivesse terminado a prova.



Com esta prova e com a lesão que me impediu de a terminar, percebi que só treinar arduamente, ter um plano calculado ao metro, saber quando e de que forma fazer a nutrição e estudar bem o percurso, não é o suficiente. Em todas as provas, e ainda mais numa prova destas, há que ter uma "estrelinha da sorte" ao nosso lado. Ter a sorte de não cair, de não assentar mal um pé, de não comer nada que afete o estômago, que mil e uma coisas que podem acontecer e para as quais podemos não estar preparados não aconteçam. E o que me entristece a sério é que não tive esta "estrelinha" comigo, ou que apenas esteve presente durante os treinos e que me abandonou nos primeiros kms da prova. Eu fiz tudo, tudo conforme o previamente planeado. Cumpri 95% de um plano de treinos ao longo de 6 meses, testei equipamento e nutrição e levei os que melhor me adaptei, subi sempre com uma passada curta e constante, evitei as escadas tanto quanto possível, desci cautelosamente e sem arriscar nada, e, mesmo assim, uma lesão imprevista proveniente de uma queda à partida inocente, impediu-me de cruzar aquela meta e, também eu, ser um dos heróis do MIUT. Não foi este ano, mas a Madeira é, sem dúvida, um livro por concluir.

Como disse, o MIUT é dor, alegria e heroísmo, mas alguns apenas lhe sentem a dor.